EstreLindas
Ora (direis) ouvir estrelas! Certo, Perdeste o senso! E eu vos direi, no entanto, Que, para ouvi-las, muita vez desperto E abro as janelas, pálido de espanto... E conversamos toda a noite, enquanto a Via Láctea, como um pálio aberto, Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, Inda as procuro pelo céu deserto. Direis agora: Tresloucado amigo! Que conversas com elas? Que sentido Tem o que dizem, quando estão contigo? E eu vos direi: Amai para entendê-las! Pois só quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e de entender estrelas. Olavo Bilac, Via Láctea – “Soneto XIII”
Sou moradora da Rua das Estrelas, e como poeta tenho uma relação de grande familiaridade com minha rua. Gosto de perder-me andarilhando por suas esquinas em devaneios noturnos: percorro a sua Via Láctea, encontro-me com as Três Marias, flerto com Júpiter e fico perdida na encruzilhada do Cruzeiro do Sul.
Considero, assim, que a Rua das Estrelas é um desses lugares das confluências, onde nem precisamos procurar por nada, pois algum encontro iluminado sempre acontece.
É exatamente nessa rua que um coletivo de mulheres denominado Escrevinhar na Rua das Estrelas vem se encontrando quinzenalmente, há quatro anos, para ouvir estrelas e produzir escritas de si e do mundo. Não é por acaso que elas se reconhecem e se autointitulam, carinhosamente, de EstreLindas!
Esse lugar de encontros para ouvir estrelas, falar, escrever e acolher o outro possibilita o desarmar do medo, da insegurança, da timidez, faculta uma libertação do eu, da escrita de si, permite o despojar-se de máscaras e defesas, numa exponencial crescente de criações literárias e poéticas.
O fazer poético – luminoso e coletivo – provoca nas EstreLindas o esperançar utopias. Todas as exterioridades e complexidades do mundo as afetam e convidam ao gesto libertário da escrita, conforme nos ensinou o mestre Paulo Freire.
Os discursos de ódio, de intolerância, de opressão com os quais nos deparamos hoje não estão alheios às suas escritas. A narrativa literária é também dialógica, “é prenhe de resposta”, ativa, sem apagamento das vozes, como nos aponta o filósofo Bakhtin. Se cabe às EstreLindas uma resistência a tudo isso, uma resposta, respondem escrevinhando. Como nos diz o poeta Bartolomeu Campos de Queirós:
As palavras podem abrir feridas, mas também cicatrizam as chagas. A palavra não sangra, a palavra cura. A palavra liberta a dor. E quando escrita, a dor nos pacífica. A palavra é flor fechada quando dentro de nós. Escrever é deixar a flor se abrir.
Para as EstreLindas, o escrevinhar na Rua das Estrelas é uma possibilidade de outrar-se, e, inspiradas em Fernando Pessoa, aceitam o desafio e a possibilidade de se desdobrarem em sucessivas identidades, deixam-se contagiar pelo sentido do novo e do diferente, se transmutam em estrelas, como uma nova forma de ser e estar no mundo, de sentir a vida e de iluminar sonhos e esperançar utopias.
São utópicas as EstreLindas? Afirmo que sim! As utopias as fazem caminhar, a se encontrarem nessa jornada na Rua das Estrelas, onde o real e a fantasia se misturam e se separam. E, assim, se nutrem e resistem apoiadas— nas estrelas, no coletivo, nas escritas, nas lutas, nos sonhos e esperanças, porque acreditam que “outro mundo é possível”.
Encerro esta crônica com um poema do Coletivo Escrevinhar na Rua das Estrelas, do qual faço parte.
Estrelaçando Fábrica de Escrevinhar Rua das Estrelas n.º 28 Local onde as Estrelindas produzem palavras fiadas a múltiplas mãos Remendam palavras cadentes que sofrem por amores perdidos Cerzideiras de palavras não ditas e aprisionadas em cativeiro de dor Operárias unem minúsculas palavras estrelares Formam o sonhar e as utopias em Via-Láctea Num firmamento de dor Tecem palavras que guiam e iluminam a escuridão Estrelaçando vontades Surgidas sem intenção Nascidas entre tantas Mulheres pensantes Que em voo só Aterrissam em estradas Nunca antes viajadas Na sala concreta Da rua sonhada Mulheres reais gestam estrelas E tecem ninhos Com tramas de luz Para aconchegar escritas de si Em tempos sombrios De terra arruinada E homens toscos Uma nesga de luz Desvela a alma feminina Estrelinhando palavras Na alquimia poética Da Rua das Estrelas Uma noite estrelada Cruzeiro do Sul, Vênus Três Marias, Via Láctea Contemplação de corpos distantes Viagens de mil anos-luz Mas E se as estrelas forem cada uma de nós? Aqui na Terra... A essência nos moldando A vida constituindo nossa voz Era uma rua meio apagada Cheia de Barros, a tal Mariz Não encantava a passarada Seu entardecer assim tão gris Lá no vinte e oito surge um dia A Dona Angel, Pum pim feliz Convoca brilhos com ousadia Bailam estrelas com colibris Mulheres em flor iluminam os fios da linha Vida escrevinham ao sabor da luz Já estrelada a ruazinha Constelação nova agora reluz.
Poesia publicada pelo Coletivo Escrevinhar na Rua das Estrelas na Antologia Vicejantes, organizada por Cristiana Seixas (SEIXAS, 2018) – Edições Cândido.http://www.edicoescandido.com/loja/busca.php?loja=827706&palavra_busca=vicejante
Para conhecerem melhor o Coletivo Escrevinhar na Rua das Estrelas, sua história e seu fazer literário, sugiro a leitura do trabalho por elas apresentado no Simpósio Internacional de Língua Portuguesa, em Porto de Galinhas, PE, em 2019, acessando o link:
http://sites-mitte.com.br/anais/simelp/busca_2.htm?query=Inez+munhoz
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